Diário de Bordo

Márcio Torres relata circunavegação da ilha de Itaparica a bordo do Lemurian Expedition I


Há dois anos comecei a rabiscar aventuras remando, influenciado por remadas diárias que praticava na "Pedra Que Ronca" num dos caiaques de plástico que Hamiltinho alugava na praia de Itapuã.

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A cada dia remava mais longe e meu espírito inquieto começou a martelar minha mente. Já caminhei muito, pedalei também, surfar então...

Sempre tive aquele projeto antigo de velejar o mundo guardado na gaveta, esperando a oportunidade. Tinha não, tenho! Talvez seja meu maior projeto, o de ver o mundo inteiro e aprender com a simplicidade de povos que ainda vivem desconectados do mundo global.

Mas essa história, de como concebi a LEMURIAN EXPEDITION - I - REMANDO DE SALVADOR AO RIO DE JANEIRO vocês estão carecas de saber. O que importa mesmo, nessa altura do campeonato, é que esperei ansiosamente por uma chance de sair remando no LEMURIAN - I, dormindo acampado em qualquer praia pelo caminho e de realizar algo cuja envergadura se aproximasse da missão maior, chegar ao Rio.

Tudo começou quando "Marquera" (grande amigo) saiu do seu emprego e me disse que poderia trabalhar na loja por mim. Pronto! Passei o final de semana agoniado e na segunda-feira arrumei tudo. Na terça Thaty, Jade e Lua (minha família) me levaram ao Centro Náutico da Bahia e encontrei o capitão Anchieta no Across mais uma vez, vão se acostumando com esses nomes, Anchieta agora é um dos nossos técnicos, juntamente com o paulista-alemão Christian Fuchs, mas essa história contarei depois.

Parti então para Itaparica, vento fraco, quadrante leste, mar levemente balançado e tempo parcialmente nublado. Aproveitei a vazante da maré e mirei minha proa para a Igrejinha da Penha, numa diagonal favorecida pela corrente de saída da Baía. Remada segura e firme, confiança no topo do mastro e olhar atento para não ser atropelado por uma embarcação de grande porte.

Da Penha à Caixa Pregos, senti meu peso pesado, meus punhos, ombros, quadril, lombar, virilha, calcanhar, minha mente! Passeei com golfinhos, tartarugas, peixes voadores, tainhas saltitantes, meu alento.

Remada séria e responsável, ondas grandes entravam com potência e explodiam no longo quebra-mar de corais e pedras que me seguiram até Aratuba. Exausto e achando que havia remado mais de quarenta quilômetros aportei numa linda prainha cercada por uma reserva impressionante de mata Atlântica preservada, onde uma choupana abandonada de pescadores me serviu de abrigo do sol. Armei o camping e chamei algum morador do vilarejo ao lado. Eis que surge um senhor de meia idade, pele curtida do sol e barba por fazer. Muito sério me fitou incognitamente, e lhe perguntei se sua senhora não me poderia vender um prato feito. O mesmo acenou positivamente com a cabeça e entrou.

Após umas duas horas me trouxe um prato de farofa de ovo, com um ovo frito, tomate, cebola e dois pedaços bem brilhantes de carne do sol que devorei sentado ao lado da minha barraca admirando o mar.

Tentei lhe pagar pelo prato, mas o Sr. Altair não aceitou, me deixou constrangido e depois de muita explicação e carinho, consegui que aceitasse meu agrado. Tomei um banho de balde com água doce oferecida pelo Sr. Altair, troquei de roupa e fiz uma caminhada pela praia, admirando a mata fechada e sentindo muito pesar pela quantidade de lixo plástico acumulada na encosta.

Quando a noite caiu, aproveitei pra telefonar para Thaty, meu pai, Karyne, Paulinho e Anchieta e escutei mensagens de amor e de força. Foi um dia atípico, diferente, onde fui guiado pelo instinto, um dia em que pensei pouco, acho que deslumbre e uma dose certa de ficha de realidade caindo.
Dormi um sono leve, incômodo e desconfortável, não levei travesseiro, nem isolante térmico, só meu fino saco de dormir instalado diretamente na areia.

Na manhã de quarta-feira, dia 24, acordei antes de o sol nascer e me senti muito bem, apesar de bastante dolorido. Céu azul e dia lindo, levantei o camping, tomei um café da manhã com leite achocolatado e biscoitos de maizena e quando estava prestes a partir, o Sr. Altair apareceu na praia com um prato com ovo, dois pães numa mão e um copo de café com leite na outra.

Com um sorriso largo na boca me ofereceu a refeição, carinhosamente e com muito pesar no coração, tive que negar, pois se comesse mais, poderia passar mal no mar. Agradeci-lhe profundamente com promessas de retornar com Hamiltinho numa outra expedição.

Ao entrar no caiaque, ânimo renovado e força nos braços. Na entrada do canal de Caixa Pregos a previsão do capitão Anchieta se concretizou. Como a maré estava vazando, a saída de água do canal era intensa e muito forte. Mesmo remando com toda intensidade não saia do lugar. Levantei o leme e passei a remar bem na beiradinha, quase que tocando o casco na areia. Foi um longo dia de remada, das 07h as 14h quando avistei a capital da ilha, Itaparica, terra do escritor João Ubaldo Ribeiro.

No caminho, aportei numa ilha privada sob desconfiança dos caseiros, remei num braço de mar enorme, quase encalhei várias vezes nos inúmeros bancos de areia pelo caminho e zigue-zagueei num rumo muito mais complexo que poderia imaginar na teoria. A maré esteve bem seca por quase todo o percurso, afinal era semana de lua grande, fator que complicou ainda mais minha vida em todos os sentidos, tamanho e potência das ondas no primeiro dia, correnteza contrária no segundo dia, além de uma maré baixa que aumentou muito a distância entre caixa Pregos e a vila de Itaparica.

Aportei na marina Itaparica, muito bonita e luxuosa com belas embarcações oriundas de todo o planeta. Conheci o administrador da marina, Amando, que gentilmente guardou o LEMURIAN - I na garagem e ao lado de uma lancha.
Procurei uma pousadinha, precisava descansar e conheci uma alemã velejadora que vive a oito anos na vila. No caminho da lotérica onde sacaria algum dinheiro, reencontrei Fábinho, um amigo que não via há vinte anos. Passamos a tarde juntos, jantei na casa dos seus pais e conheci sua esposa. Obrigado Fabinho muito bom reativar essa amizade.

Na cama, assisti e torci pelo título inédito do Atlético Mineiro, parabéns a torcida do Galo, título muito merecido para quem já sofreu muito. Lembrei do meu Baêaaa e imaginei se teria um dia alegria como essa.

Na manhã do outro dia, arrumei as coisas, e já sentado ao lado do LEMURIAN - I tomei meu café da manhã com leite achocolatado e biscoitos de maizena. O tempo havia mudado radicalmente, o lindo dia anterior se foi e trouxe um clima tenebroso, de forte vento sul e mar mexido. Parti sem demora a fim de me garantir, precisava aproveitar a maré vazante que me empurraria até o Centro Náutico e chegar sem demora.

As 07h50min parti e dentro de uma hora e meia avistei em meio à forte névoa de chuva, o porto de Bom Despacho. Duro mesmo foi me imaginar atravessando a Baía naquelas condições. Esperei a saída de um Ferryboat, mirei minha proa trinta graus à boreste tomando como referência o próprio "Ferry" e remei com força total pra sair o quanto antes daquela condição incômoda e perigosa. Em meio a navios monstruosos atingi o meio do percurso e o tempo foi abrindo, pude avistar a silueta da cidade de Salvador e no final do percurso, o Forte São Marcelo.

Estava de volta à minha família e pude sentir um gostinho de conquista, mesmo que bem pequenino se comparado com o propósito da viagem ao Rio. É de pequenos passos que se forma um homem!

Percurso total: 110 km

Circunavegação da ilha de Itaparica realizada!

*Fique por dentro da LEMURIAN EXPEDITION, acessando o Lemurianexpedition.com

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